origens e enquadramento


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uma das primeiras recordações que tenho de infância é o cheiro das torradas com manteiga. o meu pai preparava-as, sem falta, todas as manhãs e, assim que me foi permitido dar o primeiro contributo na cozinha, este cheiro era o sinal de que estava na hora de ir ferver o leite, que bebíamos, eu e o meu pai, sempre coado, porque aos dois agoniava a nata.

em cada semana, dependendo do horário da escola, meu e da minha mãe-professora, a composição do almoço variava com a hora a que era servido. o jantar foi sempre um pouco mais elaborado. cedo comecei a ajudar a minha mãe em pequenas tarefas, por insistência minha (ela nunca gostou que lhe andassem de roda da cozinha): lavava e descascava legumes, pelava batatas, picava cebola e, a minha favorita, temperava a carne, que nunca chegavam intacta à frigideira porque eu cortava os cantinhos e a comia crua.

ao fim-de-semana, a minha mãe esmerava-se e puxava dos galões: filha de um administrador em Angola, cresceu com a minha avó a preparar banquetes para receber, entre outros, militares, médicos e governadores; mulher de um descendente de luso-indianos, aprendeu, com a minha outra avó, as cores e aromas intensos da cozinha indiana; irmã de uma Senhora com mãos de fada, esposa de um antigo Embaixador Português em Inglaterra, e portanto de gostos muito tradicionalistas mas refinados, sofreu influências do mais tradicional português ao vincadamente inglês; finalmente, dona de uma curiosidade muito própria, apesar de não ter viajado muito, sempre se interessou pela gastronomia de outros países, pelo que recebia não raras vezes livros de culinária exótica.

a norma eram os almoços a quatro. três, depois de a minha irmã ter ido estudar para o "continente", mas, não raras vezes, recebíamos amigos em casa, que por sua vez nos convidavam para almoçaradas em suas casas. trocavam-se assim experiências e dicas gastronómicas. e sonhava-se, em voz alta, com dia em que todos se juntariam para abrir um restaurante.

durante anos, e ao contrario de muitas das minhas colegas, não usei roupa de marca, não frequentei escolas privadas, academias, ginásios, clubes náuticos, hípicos, não viajei para fora de Portugal. mas nunca me faltou em casa, a comida, bem confeccionada, de boa proveniência e com criatividade.

os testes psicotécnicos apontavam para a matemática; eu, sempre do contra, fui para ciências. ao fim de um ano, desiludida com a falta de "cientificidade" de alguns dos meus professores, mudei para artes. fiz o 10º ano na Madeira, os restantes anos do ensino secundário no Algarve, onde o nível de ensino era, na altura, francamente pior, mas sempre ficava mais fácil para vir à capital.

na dúvida entre a pintura, o design e a escultura, optei pela 3º, e mais improvável.

convivi com pessoas fantásticas no meu percurso universitário. desenvolvi capacidades críticas e humanas que me permitiram, se não modelar o barro com o primor que se espera de um escultor virtuoso, modelar-me a mim mesma.

a experiência que recordo com maior eloquência é, sem dúvida, a do meu Erasmus. foi, dos meus seis anos de curso, o ano em que mais viajei, melhor comi, mais trabalhei, mais vezes me apaixonei, mais cozinhei e mais engordei (sorrisos).

findo o curso, fiz questão de ir logo trabalhar. a primeira oportunidade que surgiu foi na livraria da fnac. sempre gostei de ler e encontrei mais paridade emtre personagens de livros que pessoas do mundo real portanto pareceu fazer sentido... lá conheci um rapaz, com quem mais tarde namorei. ele falou-me de algo que me soou estranhamente familiar: "Ayurveda".

durante um ano, pratiquei Yoga, fiz uma alimentação quase exclusivamente vegetariana, ajudei a promover palestras e cursos de alimentação védica em Portugal, tendo participado num, como aluna e ajudante de cozinha.

no fim desse ano, vim para Lisboa com o propósito de fazer um curso de animação, uma grande paixão minha que ganhou vida no segundo ano de faculdade, e aqui surgiu a oportunidade de explorar a cozinha do hostel de uns amigos meus.

foram meses de luta. os menus eram criados e definidos por mim, era eu que fazia as compras e carregava sozinha os sacos (excepto aos sábados em que um mui querido amigo disponibilizava carro e braços para ajudar); lavava, preparava e cozinhava os ingredientes, servia o jantar, lavava a loiça e ao fim da noite limpava a cozinha. queriam-me a fazer cozinha típica portuguesa, eu queria algo mais refinado. (não havia budget para o "gourmet", mas em cozinha vegetariana era-me possível oferecer qualidade aos hóspedes, sendo também um bom desafio para mim própria).

as maiores dificuldades foram ter de partilhar a cozinha com os hóspedes e a fraca aposta na divulgação dos jantares pela parte do hostel (note-se que eu tinha um outro emprego e não conseguia, por essa razão, fazê-la eu mesma). o número de pessoas muitas vezes não compensava o esforço e ao fim do dia tinha ainda que ir para casa carregada com sobras.

apesar de tudo isto, deliciavam-me os passeios ao mercado. durante a semana, ia ao da Ribeira, ao sábado ao biológico do Príncipe Real. um vez por outra, ia a Algés ver o peixe, que cozinhava uma vez por semana. adorava correr todos os supermercados da zona, para encontrar os melhores produtos ao melhor preço, passava sempre que podia pelos supermercados indianos do centro comercial Martim Moniz, onde não raras vezes almoçava. é-me impossível descrever o gozo de cruzar o chiado, cheia de sacos, subir ao 5º andar, chegar à cozinha, enorme e solarenga, e dispor as compras na banca para começar a preparar o jantar.

o jantar foi sempre servido por mim. depois de o servir, sentava-me à mesa com as pessoas e falávamos, essencialmente, de cozinha e de como tinha ali chegado. uma das noites mais felizes, foi a noite em que um rapaz americano, muito novo, dotado de uma calma e curiosidade que não conheci em muitos, me disse que a minha comida fazia sorrir. foi a segunda vez que ouvi isto na vida, e como na primeira, corei e respondi: “sempre gostei de cozinhar para mim e para os meus, não tenho técnica nem experiência, mas ponho atenção no que faço quando cozinho, faço-o com amor”.

durante um mês, tive um rapaz que me ajudou a lavar a loiça e arrumar a cozinha em troca do jantar. sentia-me em falta por não lhe poder pagar, mas o André garantiu-me estar satisfeito com o nosso acordo.
depois, ele foi-se embora; depois, foram embora as outras pessoas. e, finalmente, vim-me embora eu, que não tinha já para quem cozinhar.
 
ficou uma coisa, um sentimento que me é raro e caro:
- ora aí está! algo que eu era capaz de fazer toda a vida.


bolo de aniversario de uma maria rapaz, feito pela minha mãe, montado pelo meu pai

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